segunda-feira, 13 de abril de 2015

Conceituando a Educação

Sempre acreditei ser da máxima importância o profissional estabelecer um conceito daquilo a que se propõe fazer. Independente da sua área de atuação, seja ela lógica ou humanística. É imprescindível saber o que se pretende, onde se quer chegar, mensurar os obstáculos, estabelecer alternativas (de desvios ou de enfrentamentos), quantificar metas e comprometer-se com elas, conhecer a história daquilo a que se compromete, saber ler as variáveis que compõem o seu campo de trabalho... E tudo o mais que se apresentar que for relacionado ao seu objeto de trabalho.
É exatamente a busca de apontamentos para aquelas e outras questões que, decerto, surgirão, que definirão um conceito para o seu desenvolvimento profissional.
            Em Educação, não poderia ser diferente. Até hoje, onde quer que eu passe e experimente “sensações pedagógicas”, fico pensando: “Como será que fulano de tal definiria a Educação?”.
E você, que de repente franziu a testa, afinal, como conceituaria essa coisa que nos move, diuturnamente, ideologicamente ou não, aos recônditos mais extremados, cheios de livros nas mãos e de revoluções na cabeça, o casaco marcado pelo pó de giz, para ensinar aqueles que devem aprender?
Se possível, desfaça-se daquelas definições teóricas, decoradas para passar na prova de História da Educação. Quer dizer, nada contra tais definições teóricas. O problema é que elas, de uma maneira envolvente, acabaram nos aprisionando em uma camisa de força. E esse foi o mal. Destituíram-nos de voz e de condições ativas, deixando-nos a repetir, por vezes sem mesmo compreendê-las, fórmulas prontas, responsáveis até, mas quase sempre impróprias às realidades com que nos defrontamos. Viramos bons teóricos, entretanto sem muito vínculo a uma prática afirmativa.
Então, a questão se faz assim: “Com suas palavras...” - parece enunciado de avaliação, não é? – “... por um viés que contemple a sua prática e pensando em uma realidade contextual, que você conhece ou deveria conhecer, como estabeleceria um conceito para Educação?”.
Para não pensar que sou injusto com os estabelecimentos teóricos, recordo-me de um texto que li, há tempos, do Luís Camargo (um arte-educador, não sei se você conhece. É fácil achar várias referências de seus pensamentos), em que lá pelas tantas, ele proclama: “Educação é o processo de desenvolvimento do ser humano”. Parece-me, se você perdoar a prepotência, um bom começo para buscarmos o tal conceito a que me refiro.
Antes de qualquer coisa, vou destacar uma obviedade. Repare que, no conceito apresentado, o objeto final do nosso empenho é o ser humano. Apesar de haver neste destaque mais do que uma obviedade, tenho notado atitudes, sistemas, metodologias que parecem ter sido criadas esquecendo-se exatamente de que é o ser humano o alvo da nossa energia. O principal deles é a tentativa sempre constante de padronização dos alunos. Padroniza-se em uma sala, em uma série, em um escalonamento quantitativo de avaliação, em um modelo de comportamento e de posturas... Já nessa referência de padronização, parece-me claro o esquecimento do que é o ser humano. Uma instituição inconstante, múltipla de formação, e de características diferenciadas, a quem não cabe processos de pasteurização; e lá estamos nós determinando essa ou aquela conformidade segundo critérios que julgamos certos e imperiosos. Lembro-me de ter visto, perdidas as contas, professores sacramentando definições a um ou outro aluno, pela simples razão daquele não atender a um determinado padrão de comportamento atribuído como condizente ao que se espera do estudante. E segue-se com o dito processo pedagógico, na crença irresponsável de que se está fazendo Educação.
Quer um outro dado para refletir? Seja franco, quantas vezes você mandou para Diretoria, Coordenação ou qualquer outra instituição assemelhada em sua Escola aquele aluno quieto, que mal se mexia na carteira, mas que só tirava boas notas? Aposto que você deve ter se perguntado “Ora, se ele tirava boas notas, por que cargas d’água eu o mandaria para a Diretoria?”. Veja aí se não cometemos mais erros. Não importa muito o que fazia aquele aluno ficar quieto, não se mexer, às vezes até nem sabíamos como era o tom de sua voz, se suas notas eram as melhores da classe. Pensamos em rótulos: alunos “problemáticos” são aqueles que tiram notas ruins. E esses, sim, devem visitar o Diretor para uma “conversinha”. Nunca quisemos enxergar que, mesmo aqueles quietinhos, também precisavam da tal “conversinha” – precisávamos saber o que se passava com eles, o que os angustiava, porque ficavam assim... Puxe na memória. Lembra-se de que aqueles alunos, normalmente, eram os mais tristes de toda a classe? Ora, se estivéssemos preocupados com o processo de humanização embutido no viés pedagógico, decerto eles seriam também alvo de nossa preocupação. Mas não, posso até parecer injusto, mas duvido muito de que naquele momento estávamos preocupados com a ideia de que lidamos com seres humanos. Acho que estávamos mais interessados em nos livrar de um problema, ou melhor, em não acrescentar mais problemas à nossa já imensa lista do que fazer.
Não podemos perder de vista a ideia de formarmos um conceito, não é? Depois de chamarmos a atenção para o objeto do nosso trabalho, vale pensar em outro fragmento do dito do Luís Camargo: desenvolvimento. Percebeu mais uma obviedade? Nossa missão é promover o desenvolvimento do ser humano. E a questão fica mais simples: estamos realmente envidando esforços para que se manifeste o tal desenvolvimento?
A questão me incomoda porque, mais uma vez, observa-se certa inconsistência nas práticas e pensamentos. Que desenvolvimento estamos promovendo? A primeira inquietude vem de uma contradição bastante comum nos espaços escolares. Se tiver tempo e paciência, faça uma enquete para confirmar minha exposição. Pergunte a alguns professores qual o objetivo do trabalho pedagógico. Prometo-lhe um doce se grande parte das respostas não for algo do tipo: “o objetivo é formar alunos críticos, pensantes, capazes de elaborar o seu próprio aprender etc etc etc”. Corta para a prática. Lá na sala de aula, o aluno, desavisado desse princípio – mas, intuitivamente, desejoso dele – resolve fazer um comentário, à sua maneira, reconheço, mas perfeitamente atinente ao que se está expondo, e ouve alguma coisa parecida com “eu já não falei para não interromper a aula?”; ou, ainda, mal maior, em um exercício de verificação de aprendizagem outro aluno até descobre uma forma alternativa de se chegar ao mesmo resultado apontado pelo professor no gabarito, mas descobre também que, se não fizer como o professor ensinou, a resposta está errada.
Percebeu a contradição? De um lado, queremos formar alunos críticos e pensantes; de outro, não deixamos os alunos serem pensantes e críticos. Tínhamos que pensar em desenvolvimento – criar condições para existir o tal desenvolvimento, promover alternativas, estabelecer estratégias, rever planos, modificar posturas e atitudes, enxergar horizontes de atuação em que essa variável seja base do trabalho.
Não sei se você já viu isso nas suas andanças, mas existem professores que punem moralmente os alunos que não se coadunam com suas propostas de trabalho. Sabe aquela coisa de humilhar o aluno, ou de criar situações de constrangimento, muito comuns nos primórdios da Educação? Pois é, ainda existem hoje em dia, e talvez sejam até mais frequentes do que imaginamos. Decerto, esses mesmos professores responderiam à sua hipotética enquete que estão fazendo de tudo para “formar pessoas melhores, alunos mais conscientes”.
Sabe o que é mais curioso? Eles acreditam, realmente, que estão contribuindo para o desenvolvimento dos alunos. Na maior das vezes, não é má fé, nem desinformação. Há um dado cultural que chega a ser interessante estudar. Esse mesmo professor também foi formado acreditando na estratégia da humilhação como pressuposto para se alcançar o desenvolvimento. Quer dizer, acredita-se que se o aluno for desafiado em sua integridade, ele cria mecanismos de defesa e de segurança, o que, em certa medida, é variável de desenvolvimento. Pode até ser, mas não é uma teoria confiável, já que os efeitos colaterais, via de regra, são desastrosos. Sabe aquele sujeito que não dança nada só porque quando participou de uma aula de dança alguém fez um comentário jocoso sobre o seu jeito de dançar? Pois é, a comparação é pertinente. Jamais teremos ideia de o quanto estaremos contribuindo para podar talentos...
Outra coisa, faz-se ainda preciso aprofundar o conceito de desenvolvimento. Parece que o associamos apenas à referência intelectual. Entretanto, o indivíduo precisa experimentar variáveis diversas de desenvolvimento: sócio-afetivo, relacional, comportamental, profissional. E é preciso que admitamos: às vezes, pouco contribuímos para o desenvolvimento intelectual, o que se dirá em relação às outras variáveis? Penso que grande parte do nosso esforço deveria ser voltada a essa problemática. Não basta ter alunos inteligentes, é preciso pensar neles como uma instituição global e buscar alternativas para que a convivência nos espaços escolares pressuponha uma garantia de que outras áreas também sejam desenvolvidas. Até imagino que você deva estar pensando no quanto eu estou maluco. “Se mal temos tempo para cumprir os programas, como vamos analisar o aluno nessas referências todas?”.
Confesso-lhe que fico preocupado com esse posicionamento dos professores em relação ao cumprimento dos programas. Penso em Paulo Freire e na sua metáfora contida na expressão “Educação Bancária” – acho que você já deve ter lido algo a respeito; aquela ideia de depositarmos a qualquer custo conhecimento na cabeça dos alunos. Perceba, por favor, que não estou aqui tentando decifrar enigmas da Educação. A minha fala tem que ser compreendida a partir de um distanciamento, através do qual possamos ter uma ideia maior do problema. Ora, será que o cumprimento normatizado dos programas é um ganho? Novamente, vem-me a imagem de que nos distanciamos do que possa ser associado ao ser humano. O cumprimento do programa parece uma atitude robotizada de um sistema que esquece níveis de complexidade da constituição dos alunos – até mesmo da nossa. Assim, se alcançarmos uma evolução sobre a discussão dos temas que se relacionam com os programas de ensino, decerto estaremos criando espaços para que o conceito de tempo nas atividades pedagógicas propicie-nos novos posicionamentos e posturas na elaboração de propostas que visem ao desenvolvimento global do aluno.
Quase ia me esquecendo. É preciso voltar à frase do Luís Camargo, pois há ainda um componente interessante lá: a palavra “processo”.
Quando dizemos que Educação é “o processo de desenvolvimento do ser humano”, deveríamos nos convencer de que há algo aí inconcluso, de natureza processual, não acabada. E não é curioso que, via de regra, enxergamos o nosso trabalho como um produto? Depois que o aluno aprender determinado conceito – verificado por intermédio de um sistema de avaliação ineficiente -, logo já temos outro conceito para que ele aprenda; no final do ano, termina-se um ciclo, para ser recomeçado no ano seguinte; e assim vai. É como se tivéssemos em mãos pequenos produtos, com os quais elaboramos o nosso plano de trabalho. Quando temos a ideia de processo, ela dura o tempo estabelecido naquele plano: uma aula, um mês, um bimestre, um trimestre. E, com raras exceções, esse processo nem é analisado quando se faz uma leitura avaliativa do aluno.
É a compreensão desse termo “processo”, que faz parte, naturalmente, do desenvolvimento humano que nos propiciará, espero, uma reflexão maior do nosso comportamento, já que ele traz uma realidade que alguns professores nem gostam de pensar. A de que, a bem da verdade, os alunos nem precisam muito de nós para o seu amadurecimento. A nossa permanência na vida deles tem uma importância muito curta – é claro que alguns professores tornam essa permanência inesquecível, fazendo-se verdadeiramente importantes. Os alunos vão receber influências de outras instituições: a família, os amigos, a sociedade, o trabalho, as mídias, as convicções religiosas etc. E todas estas influências, somadas à nossa, constituirão o tal processo de desenvolvimento.
A ideia é que criemos uma consciência dos nossos limites. E, sobretudo, que aprendamos a conceituar o nosso trabalho. Por que princípios eu vou caminhar? Quais são as bases que constituem o meu método? Quando se estabelecem algumas diretrizes que fundamentam aquilo que se está fazendo, no mínimo há uma consciência profissional responsável que fornecerá respaldo ao que se pretende.


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