Sempre
acreditei ser da máxima importância o profissional estabelecer um conceito
daquilo a que se propõe fazer. Independente da sua área de atuação, seja ela lógica
ou humanística. É imprescindível saber o que se pretende, onde se quer chegar,
mensurar os obstáculos, estabelecer alternativas (de desvios ou de
enfrentamentos), quantificar metas e comprometer-se com elas, conhecer a
história daquilo a que se compromete, saber ler as variáveis que compõem o seu
campo de trabalho... E tudo o mais que se apresentar que for relacionado ao seu
objeto de trabalho.
É
exatamente a busca de apontamentos para aquelas e outras questões que, decerto,
surgirão, que definirão um conceito para o seu desenvolvimento profissional.
Em Educação, não poderia ser
diferente. Até hoje, onde quer que eu passe e experimente “sensações
pedagógicas”, fico pensando: “Como será que fulano de tal definiria a
Educação?”.
E
você, que de repente franziu a testa, afinal, como conceituaria essa coisa que
nos move, diuturnamente, ideologicamente ou não, aos recônditos mais
extremados, cheios de livros nas mãos e de revoluções na cabeça, o casaco
marcado pelo pó de giz, para ensinar aqueles que devem aprender?
Se
possível, desfaça-se daquelas definições teóricas, decoradas para passar na
prova de História da Educação. Quer dizer, nada contra tais definições
teóricas. O problema é que elas, de uma maneira envolvente, acabaram nos
aprisionando em uma camisa de força. E esse foi o mal. Destituíram-nos de voz e
de condições ativas, deixando-nos a repetir, por vezes sem mesmo
compreendê-las, fórmulas prontas, responsáveis até, mas quase sempre impróprias
às realidades com que nos defrontamos. Viramos bons teóricos, entretanto sem
muito vínculo a uma prática afirmativa.
Então,
a questão se faz assim: “Com suas palavras...” - parece enunciado de avaliação,
não é? – “... por um viés que contemple a sua prática e pensando em uma
realidade contextual, que você conhece ou deveria conhecer, como estabeleceria
um conceito para Educação?”.
Para
não pensar que sou injusto com os estabelecimentos teóricos, recordo-me de um
texto que li, há tempos, do Luís Camargo (um arte-educador, não sei se você
conhece. É fácil achar várias referências de seus pensamentos), em que lá pelas
tantas, ele proclama: “Educação é o processo de desenvolvimento do ser humano”.
Parece-me, se você perdoar a prepotência, um bom começo para buscarmos o tal
conceito a que me refiro.
Antes
de qualquer coisa, vou destacar uma obviedade. Repare que, no conceito
apresentado, o objeto final do nosso empenho é o ser humano. Apesar de haver
neste destaque mais do que uma obviedade, tenho notado atitudes, sistemas,
metodologias que parecem ter sido criadas esquecendo-se exatamente de que é o
ser humano o alvo da nossa energia. O principal deles é a tentativa sempre
constante de padronização dos alunos. Padroniza-se em uma sala, em uma série,
em um escalonamento quantitativo de avaliação, em um modelo de comportamento e
de posturas... Já nessa referência de padronização, parece-me claro o
esquecimento do que é o ser humano. Uma instituição inconstante, múltipla de
formação, e de características diferenciadas, a quem não cabe processos de
pasteurização; e lá estamos nós determinando essa ou aquela conformidade
segundo critérios que julgamos certos e imperiosos. Lembro-me de ter visto,
perdidas as contas, professores sacramentando definições a um ou outro aluno,
pela simples razão daquele não atender a um determinado padrão de comportamento
atribuído como condizente ao que se espera do estudante. E segue-se com o dito
processo pedagógico, na crença irresponsável de que se está fazendo Educação.
Quer
um outro dado para refletir? Seja franco, quantas vezes você mandou para
Diretoria, Coordenação ou qualquer outra instituição assemelhada em sua Escola aquele aluno
quieto, que mal se mexia na carteira, mas que só tirava boas notas? Aposto que
você deve ter se perguntado “Ora, se ele tirava boas notas, por que cargas
d’água eu o mandaria para a Diretoria?”. Veja aí se não cometemos mais erros.
Não importa muito o que fazia aquele aluno ficar quieto, não se mexer, às vezes
até nem sabíamos como era o tom de sua voz, se suas notas eram as melhores da
classe. Pensamos em rótulos: alunos “problemáticos” são aqueles que tiram notas
ruins. E esses, sim, devem visitar o Diretor para uma “conversinha”. Nunca
quisemos enxergar que, mesmo aqueles quietinhos, também precisavam da tal
“conversinha” – precisávamos saber o que se passava com eles, o que os
angustiava, porque ficavam assim... Puxe na memória. Lembra-se de que aqueles
alunos, normalmente, eram os mais tristes de toda a classe? Ora, se
estivéssemos preocupados com o processo de humanização embutido no viés
pedagógico, decerto eles seriam também alvo de nossa preocupação. Mas não,
posso até parecer injusto, mas duvido muito de que naquele momento estávamos
preocupados com a ideia de que lidamos com seres humanos. Acho que estávamos
mais interessados em nos livrar de um problema, ou melhor, em não acrescentar
mais problemas à nossa já imensa lista do que fazer.
Não
podemos perder de vista a ideia de formarmos um conceito, não é? Depois de
chamarmos a atenção para o objeto do nosso trabalho, vale pensar em outro
fragmento do dito do Luís Camargo: desenvolvimento. Percebeu mais uma
obviedade? Nossa missão é promover o desenvolvimento do ser humano. E a questão
fica mais simples: estamos realmente envidando esforços para que se manifeste o
tal desenvolvimento?
A
questão me incomoda porque, mais uma vez, observa-se certa inconsistência nas
práticas e pensamentos. Que desenvolvimento estamos promovendo? A primeira
inquietude vem de uma contradição bastante comum nos espaços escolares. Se
tiver tempo e paciência, faça uma enquete para confirmar minha exposição.
Pergunte a alguns professores qual o objetivo do trabalho pedagógico.
Prometo-lhe um doce se grande parte das respostas não for algo do tipo: “o
objetivo é formar alunos críticos, pensantes, capazes de elaborar o seu próprio
aprender etc etc etc”. Corta para a prática. Lá na sala de aula, o aluno,
desavisado desse princípio – mas, intuitivamente, desejoso dele – resolve fazer
um comentário, à sua maneira, reconheço, mas perfeitamente atinente ao que se
está expondo, e ouve alguma coisa parecida com “eu já não falei para não interromper
a aula?”; ou, ainda, mal maior, em um exercício de verificação de aprendizagem
outro aluno até descobre uma forma alternativa de se chegar ao mesmo resultado
apontado pelo professor no gabarito, mas descobre também que, se não fizer como
o professor ensinou, a resposta está errada.
Percebeu
a contradição? De um lado, queremos formar alunos críticos e pensantes; de
outro, não deixamos os alunos serem pensantes e críticos. Tínhamos que pensar
em desenvolvimento – criar condições para existir o tal desenvolvimento,
promover alternativas, estabelecer estratégias, rever planos, modificar
posturas e atitudes, enxergar horizontes de atuação em que essa variável seja
base do trabalho.
Não
sei se você já viu isso nas suas andanças, mas existem professores que punem
moralmente os alunos que não se coadunam com suas propostas de trabalho. Sabe
aquela coisa de humilhar o aluno, ou de criar situações de constrangimento,
muito comuns nos primórdios da Educação? Pois é, ainda existem hoje em dia, e
talvez sejam até mais frequentes do que imaginamos. Decerto, esses mesmos
professores responderiam à sua hipotética enquete que estão fazendo de tudo
para “formar pessoas melhores, alunos mais conscientes”.
Sabe
o que é mais curioso? Eles acreditam, realmente, que estão contribuindo para o
desenvolvimento dos alunos. Na maior das vezes, não é má fé, nem desinformação.
Há um dado cultural que chega a ser interessante estudar. Esse mesmo professor
também foi formado acreditando na estratégia da humilhação como pressuposto
para se alcançar o desenvolvimento. Quer dizer, acredita-se que se o aluno for
desafiado em sua integridade, ele cria mecanismos de defesa e de segurança, o
que, em certa medida, é variável de desenvolvimento. Pode até ser, mas não é
uma teoria confiável, já que os efeitos colaterais, via de regra, são
desastrosos. Sabe aquele sujeito que não dança nada só porque quando participou
de uma aula de dança alguém fez um comentário jocoso sobre o seu jeito de
dançar? Pois é, a comparação é pertinente. Jamais teremos ideia de o quanto
estaremos contribuindo para podar talentos...
Outra
coisa, faz-se ainda preciso aprofundar o conceito de desenvolvimento. Parece
que o associamos apenas à referência intelectual. Entretanto, o indivíduo
precisa experimentar variáveis diversas de desenvolvimento: sócio-afetivo,
relacional, comportamental, profissional. E é preciso que admitamos: às vezes,
pouco contribuímos para o desenvolvimento intelectual, o que se dirá em relação
às outras variáveis? Penso que grande parte do nosso esforço deveria ser
voltada a essa problemática. Não basta ter alunos inteligentes, é preciso
pensar neles como uma instituição global e buscar alternativas para que a
convivência nos espaços escolares pressuponha uma garantia de que outras áreas
também sejam desenvolvidas. Até imagino que você deva estar pensando no quanto
eu estou maluco. “Se mal temos tempo para cumprir os programas, como vamos
analisar o aluno nessas referências todas?”.
Confesso-lhe
que fico preocupado com esse posicionamento dos professores em relação ao
cumprimento dos programas. Penso em Paulo Freire e na sua metáfora contida na
expressão “Educação Bancária” – acho que você já deve ter lido algo a respeito;
aquela ideia de depositarmos a qualquer custo conhecimento na cabeça dos
alunos. Perceba, por favor, que não estou aqui tentando decifrar enigmas da
Educação. A minha fala tem que ser compreendida a partir de um distanciamento,
através do qual possamos ter uma ideia maior do problema. Ora, será que o
cumprimento normatizado dos programas é um ganho? Novamente, vem-me a imagem de
que nos distanciamos do que possa ser associado ao ser humano. O cumprimento do
programa parece uma atitude robotizada
de um sistema que esquece níveis de complexidade da constituição dos alunos –
até mesmo da nossa. Assim, se alcançarmos uma evolução sobre a discussão dos
temas que se relacionam com os programas de ensino, decerto estaremos criando
espaços para que o conceito de tempo nas atividades pedagógicas propicie-nos
novos posicionamentos e posturas na elaboração de propostas que visem ao
desenvolvimento global do aluno.
Quase
ia me esquecendo. É preciso voltar à frase do Luís Camargo, pois há ainda um
componente interessante lá: a palavra “processo”.
Quando
dizemos que Educação é “o processo de desenvolvimento do ser humano”,
deveríamos nos convencer de que há algo aí inconcluso, de natureza processual,
não acabada. E não é curioso que, via de regra, enxergamos o nosso trabalho
como um produto? Depois que o aluno aprender determinado conceito – verificado
por intermédio de um sistema de avaliação ineficiente -, logo já temos outro
conceito para que ele aprenda; no final do ano, termina-se um ciclo, para ser
recomeçado no ano seguinte; e assim vai. É como se tivéssemos em mãos pequenos
produtos, com os quais elaboramos o nosso plano de trabalho. Quando temos a ideia
de processo, ela dura o tempo estabelecido naquele plano: uma aula, um mês, um
bimestre, um trimestre. E, com raras exceções, esse processo nem é analisado
quando se faz uma leitura avaliativa do aluno.
É
a compreensão desse termo “processo”, que faz parte, naturalmente, do
desenvolvimento humano que nos propiciará, espero, uma reflexão maior do nosso
comportamento, já que ele traz uma realidade que alguns professores nem gostam
de pensar. A de que, a bem da verdade, os alunos nem precisam muito de nós para
o seu amadurecimento. A nossa permanência na vida deles tem uma importância
muito curta – é claro que alguns professores tornam essa permanência
inesquecível, fazendo-se verdadeiramente importantes. Os alunos vão receber
influências de outras instituições: a família, os amigos, a sociedade, o
trabalho, as mídias, as convicções religiosas etc. E todas estas influências,
somadas à nossa, constituirão o tal processo de desenvolvimento.
A
ideia é que criemos uma consciência dos nossos limites. E, sobretudo, que
aprendamos a conceituar o nosso trabalho. Por que princípios eu vou caminhar?
Quais são as bases que constituem o meu método? Quando se estabelecem algumas
diretrizes que fundamentam aquilo que se está fazendo, no mínimo há uma
consciência profissional responsável que fornecerá respaldo ao que se pretende.
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